Quarenta e
cinco bilhões de reais desperdiçados, 764 normas criadas diariamente,
97 obrigações acessórias principais a serem cumpridas pelo cidadão e
pelas empresas e 2.600 horas somente para se apurar e pagar impostos. Os
números são desastrosos, mas retratam bem a saga que o brasileiro
enfrenta quando se trata de burocracia.
O tema é tão dramático que o país já chegou a criar, no final da
década de 70, um ministério para tentar reduzir os tentáculos do Estado.
Chamado de Ministério da Desburocratização, a pasta teve uma vida
curta, existiu somente de 1979 a 1986. O mesmo não se pode dizer da
burocracia. Trinta anos depois dessa tentativa frustrada, ela continua
sendo um peso para o dia a dia do contribuinte e para o desenvolvimento
do país.
Perceber o quanto a “cultura do carimbo” se faz presente não é
difícil. Basta abrir a carteira ou consultar a caixinha de documentos
guardada em casa. Certidão de Nascimento, Identidade, CPF, Carteira de
Habilitação, Título de Eleitor, Carteira de Trabalho, Certidão de
Casamento, carteira de estudante, passaporte, carteirinha de vacinação,
só para citar alguns. A lista de documentos e exigências feitas por
diversos órgãos das esferas federal, estadual e municipal parece não ter
fim.
Assim como não parecem ter fim as dificuldades que surgem em
situações do nosso cotidiano. Fazer uma reforma em casa ou mesmo comprar
um imóvel pode passar da realização de um sonho para um fardo. No caso
de uma obra, ainda que sem grandes intervenções, sobram exigências junto
a prefeituras, corpo de bombeiros e órgãos ambientais. E os prazos, em
geral, se alongam para além do previsto.
Já na compra ou venda de um imóvel, os entraves vão desde o
levantamento de certidões, falta de padronização em cartórios, registros
confusos e, claro, uma cobrança exorbitante de taxas. O imbróglio se
repete em outras situações, como na partilha da herança ou na obtenção
de crédito junto a instituições financeiras. Conseguir um empréstimo
pode levar mais de um ano.
Símbolo
Não é à toa que cenas como pilhas de documentos e filas
exorbitantes acabaram virando símbolos da ineficiência que o país
carrega como consequência do volume e da complexidade de suas normas e
cobranças. Também o resultado não poderia ser diferente. Por dia útil,
segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), são
criadas, em média, 764 regras entre leis, medidas provisórias,
instruções normativas, emendas constitucionais, portarias, decretos e
tantas outras.
O exagero na quantidade de normas – sendo que muitas delas só
servem para revogar uma anterior – somado ao excesso de tributos são
alguns dos fatores que emperram o avançar da economia e colocam o Brasil
na retaguarda dos países em relação à facilidade de fazer negócios.
Relatório do Banco Mundial, com o estudo “Doing Business 2016: Medindo a
Qualidade e Eficiência”, posiciona o Brasil em 116º no ranking entre
189 economias mundiais.
O levantamento considera pontos como facilidade de abrir uma
empresa, obter crédito, pagar impostos e conseguir eletricidade. Os
resultados em muitos quesitos chega a ser vergonhoso. Para começar um
negócio no Brasil, é preciso 83 dias e superar 11 procedimentos.
Enquanto isso, em Singapura – a nação mais bem colocada na facilidade de
se fazer negócio – bastam dois dias e meio para abrir a empresa e três
procedimentos.
Vítima
A realidade brasileira é bem conhecida pelo empresário Benedito
Lemos dos Santos. Proprietário da rede de padarias Tutti Pane e há 26
anos no mercado, ele é uma das vítimas da “burrocracia”. Há cerca de
dois anos, o comerciante resolveu expandir seus negócios. Ele queria
centralizar a produção para otimizar processos e custos. A ideia era
montar a central em Jardim da Penha, onde estava instalado em um imóvel
alugado.
“O problema é que esbarramos no fato de o ponto não ter o
Habite-se. Cheguei a fazer o projeto, comprar carros para a distribuição
dos produtos, mas foram dois anos tentando conseguir o Habite-se sem
sucesso. Cada hora era uma solicitação nova. Sem esse documento, não era
possível dar entrada no projeto. Então, desisti e resolvi fechar essa
unidade”.
Mas o drama de Benedito não parou por aí. Paralelamente ao negócio
de Jardim da Penha, ele tentava abrir uma padaria em Jardim Camburi. Ele
alugou quatro pontos comerciais, cada um com 50 m2 , que o davam o
direito de fazer um mezanino. A proposta era unificar as lojas e montar a
produção na parte superior.
“Contratei arquiteto e o projeto foi feito. Mas aí descobri que com
a unificação das lojas só poderia fazer um mezanino de 50 m2 e não de
200 m2 como precisava. Se mantivesse as paredes, poderia ter quatro
estruturas superiores, uma em cada loja. Mas, com elas integradas, só me
era permitido fazer um. Acabei desistindo”.
As exigências nas duas situações renderam ao empresário despesas de
R$ 400 mil, considerando a contratação dos projetos e aluguel das
salas. E deixaram de criar 110 empregos. “O tempo todo esbarramos na
burocracia. Tudo que a gente faz é caro e, infelizmente, nos deparamos
com regras que inviabilizam o negócio”.
Para especialistas ouvidos por A GAZETA, a burocracia traz muitas
consequências. Para além de dificultar o dia a dia do cidadão e das
empresas, estimula a corrupção, a informalidade e a sonegação.
Impactos
"A burocracia estimula a sonegação e a corrupção"
João Eloi Olenike - presidente-executivo do IBPT
Reflexos
A burocracia é um problema antigo. Nós somos um país em que as
empresas precisam ter departamentos fiscais para cuidar disso. Para se
ter uma ideia, o IBPT catalogou 97 obrigações acessórias principais que
as empresas e cidadãos estão sujeitos. Isso dá um custo médio de 1,5% do
faturamento das companhias. Além disso, temos que lidar com a demora
para conseguir abrir ou fechar uma empresa. A quantidade de documentos
exigida é absurda e, em muitos casos, temos que apresentar as mesmas
coisas para órgãos diferentes. Tem hora que parece que tudo é mais
difícil e complicado só para ter mais trabalho nas repartições públicas
para os políticos terem mais cargos para indicar. Com a burocracia,
estamos estimulando a inadimplência, a pirataria, a sonegação, a
informalidade e a corrupção.
Avanços
A burocracia poderia ser reduzida com uma reforma tributária. Mas
como ela não virá, pelo menos o governo deveria simplificar a
tributação. Poderíamos reunir especialistas na área, e nas esferas
federal, estadual e municipal, para que seja feita uma relação de todas
as obrigações acessórias e se verifique se não existem informações
duplicadas. Avalio que seria possível acabar com mais de 40% dessas
obrigações. Também temos que acabar com formulários físicos.
Complexidade
"Reduzir a complexidade fiscal é a medida mais urgente"
Adriano Gianturco - professor de Ciência Política do Ibmec/MG
Consequências
O excesso de burocracia no país e o fato de termos a maior
complexidade fiscal do mundo são responsáveis por criar vários problemas
e gerar distorções. Quem tem mais dinheiro, por exemplo, tem maior
capacidade de enfrentar esses dilemas, contratando bons advogados e
contadores. E isso aumenta a desigualdade, cria mais oligopólios e os
setores ficam pouco competitivos. Além disso, cria vários entraves entre
empregador e trabalhador. No dia a dia, sentimos essa burocracia como
ao realizar serviços de cartórios e ter que contratar despachantes. O
sistema de cartórios é algo medieval. Temos que fazer coisas do tipo
como confirmar que a sua assinatura é sua. Não há eficiência nisso. E o
despachante é a alma da burocracia. Preferimos pagar alguém para não
termos que lidar com ela. É a forma que encontramos para evitar filas e
perdas de tempo.
Urgência
Simplificar normas e leis fiscais e reduzir o número de impostos
que existem já seria muito bom. Resolver o entrave da complexidade
fiscal é a medida mais urgente que precisa ser tomada. Mas isso não
avança porque ainda há muitos setores e profissionais que ganham com
esse excesso de burocracia. Temos que mudar a estrutura de incentivos.
Imagem
"O Brasil se transformou em um país de baixa confiança"
Augusto Sales - sócio da área de estratégia da KPMG
Desconfortável
Em termos de burocracia, o Brasil está numa posição muito
desconfortável. A quantidade de horas para abrirmos uma empresa ou
cumprir todas as obrigações é estúpida. Os impactos disso vão desde
atrapalhar o empreendedorismo até a corrupção. Afinal, sempre que tem
alguma dificuldade, do outro lado tem alguém que vende facilidade.
Fizemos um estudo em que as entrevistas mostraram que para tudo que se
faz tem que pagar propina. São muitas as fiscalizações que só emitem
licenças quando a pessoa dá algum dinheiro. Além dos problemas no dia a
dia empresarial, a rotina do cidadão também é mergulhada em atos
burocráticos. É só olhar o excesso de documentos que precisamos ter. RG,
CPG, CHN, certidão de nascimento, título de eleitor. O Brasil se
transformou em uma país de baixa confiança. É preciso provar que você é
realmente você.
Simplificação
Para mudar esses problemas, acredito que é preciso haver também uma
mudança cultural. Tem que haver a simplificação do Estado de alguma
forma. Precisamos simplificar impostos, unificar documentos, integrar
processos. Se reduzirmos a complexidade do Estado, já facilitaria
bastante. A tecnologia pode ser um aliado, mas desde que bem usada.
Intervenções
"É necessário reduzir o excesso de intervencionismo"
Marcílio Rodrigues Machado - presidente do Sindiex
Mascarados
O excesso de burocracia está extrapolando. Enquanto a bonança
existiu nos 10 anos para trás, quando o vento estava favorável por causa
do superciclo das commodities, muitos problemas foram mascarados. Mas
agora que o momento não é bom veio à tona muitos gargalos, sendo a
burocracia um deles. Acontece que num passado recente o sucesso mascarou
esse problema. Estudo do Banco Mundial mostra que nós não somos
competitivos nem na América Latina. Enquanto isso, lá fora os custos de
transação – como em contratos com advogados e contadores – estão caindo,
já que tudo está sendo feito on-line, no Brasil eles só aumentam e
estamos perdendo posições no ranking de facilidade para fazer negócios.
Acredito que a crise política que o Brasil está passando se não
paralisou as ações anti-burocracia, acabou não permitindo que houvesse
progressos.
Tecnologia
O Brasil precisa rever e simplificar suas exigências em órgãos como
Anvisa, Inmetro, Ministério da Saúde. Hoje, para registrar um produto é
uma burocracia gigante. O país cria muitas barreiras para fazer
protecionismo, mas que acabam prejudicando o consumidor. É necessário
reduzir o excesso de intervencionismo em várias áreas. Não se pode fazer
hoje as mesmas exigências que eram feitas no século 19. Algumas normas
não são mais necessárias em função da tecnologia.
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