O Conselho
Nacional de Política Fazendária (Confaz), foi além do que deveria.
Aliás, além do que poderia. Ou, para se valer do termo mais empregado do
momento, “pedalou” contra as empresas do Simples Nacional, ao regulamentar por meio do Convênio ICMS 93/2015 as mudanças do ICMS no comércio interestadual.
Como é sabido, a Constituição Federal foi alterada pela Emenda
Constitucional 87/2015, e, a partir de 2016, importantes alterações na
sistemática da tributação das operações interestaduais com incidência do
ICMS
deverão ser observadas. Segundo esse novo modelo[i], em operações
interestaduais com consumidor final contribuinte ou não do imposto, as
empresas passarão a recolher o ICMS da seguinte maneira[ii]:
a) ao estado de origem/remetente será recolhido o ICMS até o montante das alíquotas interestaduais fixadas pelo Senado Federal;
b) ao estado de destino, será recolhido o imposto correspondente à
diferença entre a alíquota interna do estado de destino e a alíquota
interestadual prevista pelo Senado Federal.
Até então, esse novo critério de distribuição do ICMS
entre as unidades federadas foi visto com bons olhos pela doutrina.
Afinal, com o aumento exponencial das transações realizadas de forma não
presencial, foi possível verificar que o modelo vigente privilegia
apenas os centros distribuidores do pais, localizados nas regiões Sul e
Sudeste, em desfavor dos estados do Norte, Nordeste, Centro-Oeste,
Distrito Federal e Espírito Santo.
Portanto, a EC 87/2015 surgiu para reequilibrar o modelo de
tributação nacional, tendo em vista o volume cada vez maior de operações
comerciais realizadas pela internet e por telefone.
Ocorre que a mesma Constituição que foi alterada para rever o ICMS
no comércio interestadual com consumidores finais, também impõe aos
entes federados o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e
às empresas de pequeno porte. Essa é uma determinação constitucional
que não cabe a qualquer governante ignorar (Artigo 170, IX e 179
CF/88[iii]).
Em observância ao Princípio do Tratamento Favorecido para as Empresas
de Pequeno Porte, a EC 43/2003 alterou o artigo 146 da Constituição
Federal[iv], inserindo a alínea 'd' ao citado dispositivo,
possibilitando a instituição de Regime de Tributação Unificado para tais
empresas.
Nesse cenário, a Lei Complementar 123 de 2006 (LC 123/06) instituiu o
“Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte”, que
tem dentre suas principais características o Simples Nacional,
estabelecendo normas gerais relativas ao tratamento tributário
diferenciado e favorecido no âmbito da União, dos estados, do Distrito
Federal e dos municípios.
O Simples Nacional
prevê o recolhimento unificado mensal, mediante documento único de
arrecadação de vários tributos[v] e, o mais importante para o presente
estudo, o ICMS devido pelas operações próprias.
O destaque acerca de que o Simples Nacional envolve o ICMS
devido pelas operações próprias é necessário, pois embora o regime
tenha como objetivo unificar a tributação, alguns tributos não foram
incluídos nessa unificação, tais como o ICMS devido pela substituição tributária e o diferencial de alíquotas devido pela aquisição interestadual de produtos, conhecido como “DIFAL”.
No entanto, é isento de dúvidas que o ICMS
devido pelas operações próprias das microempresas e empresas de pequeno
porte são reguladas pela LC 123/06, que possui todos os requisitos
disciplinados pela CF/88, Artigo 146, III “a” para estabelecer
tributos[vi].
Portanto, qualquer alteração da sistemática de recolhimento (alíquota, base de cálculo, contribuinte) do ICMS devido pelas operações próprias das microempresas e empresas de pequeno porte, depende de prévia alteração da LC 123/06.
O leitor desse artigo deve estar se perguntando: onde esse articulista quer chegar? Que o produto da arrecadação do ICMS das empresas do Simples não deve se sujeitar à essa alteração da constituição?
A resposta é outra. O produto da arrecadação do ICMS das micro e pequenas empresas deve sim ser harmonizado com a alteração constitucional, que passou a prever uma divisão do ICMS no comércio interestadual entre Estados de origem e destino.
E para tanto, deveria o Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN[vii]) prever um critério de rateio do produto da arrecadação do ICMS
previsto nos anexos da LC 123/06 entre os Estados de origem e destino,
atendendo à nova sistemática constitucional, sem, contudo, violar
princípios tão caros ao Estado de Direito.
No entanto, o Confaz teve uma infeliz iniciativa ao inserir a
clausula nona no Convênio 93/2015, dispondo que as empresas optantes
pelo Simples Nacional devem aplicar as diretrizes celebradas no Convênio. Vejamos:
Cláusula nona. Aplicam-se as disposições deste convênio aos
contribuintes optantes pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de
Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de
Pequeno Porte - Simples Nacional,
instituído pela Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, em
relação ao imposto devido à unidade federada de destino.
Ao agir dessa forma, de uma só vez o Confaz violou o Princípio da
Legalidade Tributária (Artigo 97 CTN, 146 CF/88 e LC 123/06); Princípio
da Uniformidade Geográfica da Tributação (Artigo 152 CF/88); Princípio
da Tratamento Favorecido às micro empresas e as empresas de pequeno
(Artigo 170, inciso IX e Artigo 179 da CF/88); Princípio da
Não-Cumulatividade (Artigo 155, §2º, I da CF/88); Princípio da Isonomia
Tributária (Artigo 150, II da CF/88); Principio da Capacidade
Contributiva (Artigo 145 § 1º CF/88); Princípio da Não-Bitributação;
Princípio do Não Confisco (Artigo 150, IV, XX CF/88).
A cobrança do diferencial de alíquotas da forma que o Confaz inseriu
na cláusula nona do Convênio 93/2015, sem respaldo legal para as
microempresas e empresas de pequeno porte, provoca grave distorção na
sistemática nacional desse imposto.
Isso porque a aquisição interestadual de bens será substancialmente
mais onerosa do que a compra no próprio Estado de uma empresa do
Simples, o que em outras palavras, impede às empresas de pequeno porte
situadas nos Estados menos desenvolvidos da federação o acesso aos
mercados mais pujantes, como sul e sudeste, desrespeitando inclusive um
dos objetivos fundamentais da República: redução das desigualdades
sociais e regionais (art. 3º, III, CF/88[viii]).
Sem falar que o Confaz desestimula a aquisição de produtos em outros
Estados mediante a oneração tributária, o que evidencia o intuito de
limitar o tráfego de bens por meio de tributo interestadual, prática
também vedada pela Constituição Federal, no seu artigo 150, V[ix].
Viola ainda o inciso III do parágrafo único do artigo 146, da CF/88, uma vez que o recolhimento do ICMS das operações próprias pelas empresas do Simples Nacional dever ser unificado e centralizado[x], mas o artigo nono subverte exatamente essa garantia constitucional.
Sem exagero, é possível enfileirar ilegalidades da cláusula nona do
citado convênio. As microempresas e empresas de pequeno porte, que
deveriam ter tratamento uniforme, diferenciado e favorecido, serão
impedidas de gozar desses benefícios, uma vez que haverá desequilíbrio e
distinção da carga tributária em função do destino das mercadorias com
as previsões do artigo nono do Convênio ICMS 93/2015.
E mais, o contribuinte optante pelo Simples que realiza operações
internas será privilegiado em relação aquele que é obrigado a transferir
a mercadoria para outro estado, uma vez que não será compelido ao diferencial de alíquota, recolhendo o ICMS apenas na forma unificada. Tudo sem base em lei (artigo 97 CTN[xi]) e sem interpretação constitucional possível.
Dessa forma, ante o corolário ao princípio da uniformidade
geográfica, que deve ser especialmente respeitado no tratamento
dispensado as microempresas e empresas de pequeno porte, tendo em vista o
direito fundamental dessas pessoas jurídicas à opção por um regime
uniforme, simplificado e favorecido, não se pode conceber a cobrança do diferencial de alíquota. Ou, no exato do Magistério do Mestre Paulo Barros de Carvalho:
A procedência e o destino são índices inidôneos para efeito de manipulação das alíquotas e da base de cálculo para os legisladores do Estados, dos Municípios e do Distrito Federal[xii].
Há uma luz no fim do túnel. Considerando que a Administração Pública
pode rever seus próprios atos quando eivados de nulidade (Súmula 473, do
Supremo Tribunal Federal[xiii]), resta-nos aguardar que o Confaz
reconheça seu equívoco e cancele a cláusula nona do Convênio ICMS
93/2015, já que editado sem qualquer interpretação constitucional que
lhe dê amparo, e sem qualquer suporte da legislação infra legal.
Ou, para quem acha que essa é uma expectativa vã desse articulista,
resta buscar a proteção do Poder Judiciário contra os nefastos efeitos
dessa equivocada regulação do Confaz, via articulação das entidades em
ações coletivas, ou individualmente.
[i]
Art. 155 (...)
§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
VII - nas operações e prestações que destinem bens e serviços a
consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro
Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de
localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a
alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual;
VIII - a responsabilidade pelo recolhimento do imposto correspondente
à diferença entre a alíquota interna e a interestadual de que trata o
inciso VII será atribuída:
a) ao destinatário, quando este for contribuinte do imposto;
b) ao remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto;
[ii] Importante ressaltar que o artigo 2º da Emenda Constitucional
87, que acresce o artigo 99 ao Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, estabelece que em 2015 será atribuído 20% do valor do
diferencial para o estado de destino e 80% para o de origem; em 2016,
40% para o estado de destino e 60% para o de origem; em 2017, 60% para o
destino e 40% para o de origem; em 2018, será atribuído 80% para o
estado destino e 20% para a origem. Finalmente, em 2019 será conferida a
integralidade do diferencial de alíquotas para o estado de destino.
[iii] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios:
(...)
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte
constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de
1995)
Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim
definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a
incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas,
tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou
redução destas por meio de lei.
[iv] Art. 146. Cabe à lei complementar:
(...)
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as
microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes
especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II,
das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da
contribuição a que se refere o art. 239.
[v] : Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) , Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI); Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) ; Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) ; Contribuição para o PIS/Pasep; Contribuição Patronal Previdenciária (CPP); Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS)
[vi] Art. 146. Cabe à lei complementar:
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos
impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos
geradores, bases de cálculo e contribuintes;
[vii] Art. 2o O tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado
às microempresas e empresas de pequeno porte de que trata o art. 1o
desta Lei Complementar será gerido pelas instâncias a seguir
especificadas:
I - Comitê Gestor do Simples Nacional,
vinculado ao Ministério da Fazenda, composto por 4 (quatro)
representantes da Secretaria da Receita Federal do Brasil, como
representantes da União, 2 (dois) dos Estados e do Distrito Federal e 2
(dois) dos Municípios, para tratar dos aspectos tributários;
[viii] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
[ix] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao
contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
(...)
V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de
tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de
pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público;
[x] Art. 146. Cabe à lei complementar:
Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d,
também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e
contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, observado que: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42,
de 19.12.2003)
(...)
III - o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição
da parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será
imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento; (Incluído pela
Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
[xi] Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I - a instituição de tributos, ou a sua extinção;
II - a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal,
ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito
passivo;
IV - a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo, ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;
[xii] In curso de direito tributário 21ª ed. Saraiva, 2009. P. 184
[xiii] SÚMULA 473
A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de
vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou
revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os
direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação
judicial
Rogério David Carneiro é advogado e sócio diretor do escritório
David & Athayde Advogados. Especialista em Direito Tributário pela
PUC-RJ e em Direito Privado Pela UFF. Membro da Sociedade Brasileira de
Direito Tributário.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário